quinta-feira, 18 de junho de 2009

Destaque da Semana - A Festa da Menina Morta


Ator consagrado no Brasil e diretor estreante com A Festa da Menina Morta, Matheus Nachtergaele vem tendo espaços privilegiados para seu filme. Sua estreia mundial aconteceu em maio de 2008, dentro da programação da respeitada mostra Un Certain Regard (Um Certo Olhar), dentro do Festival de Cannes, onde colheu as primeiras comparações com a pegada radical do Cinema Novo, especialmente o estilo de Glauber Rocha. Uma comparação que ele, aliás, assumiu como uma de suas inspirações.

Se não recebeu prêmios em Cannes, o contrário aconteceu nas demais paradas do filme, em outros festivais internacionais, como Chicago, Havana e Los Angeles, e nacionais, como Gramado e Rio.

A coleção de troféus e de elogios certamente pavimentou o caminho da estreia, q ue acontece mais um de um ano depois de sua première mundial. Mas não atenua o potencial de risco que está na própria essência desta obra radical, intensa, muitas vezes barroca, ambientada no coração da Amazônia, desdobrando uma história que mistura religião, incesto, exploração e sentimentos profundos.

Ator de filmes como Amarelo Manga e Baixio das Bestas, ambos do polêmico diretor Cláudio Assis, Matheus envereda pela mesma busca do diretor pernambucano de confrontar os padrões pasteurizados e convencionais. A vantagem é que Matheus atinge uma dramaturgia bem mais ampla e madura no roteiro assinado por ele mesmo e por outro pernambucano, Hilton Lacerda, aliás, colaborador de Assis nos dois filmes citados.

O filme explora o poder da religião numa comunidade perdida nos confins da Amazônia – filmada em Barcelos, a 400 km de Manaus. Ali, praticamente toda a população vive em função da crença nas previsões anuais de Santinho (Daniel de Oliveira, premiado no Rio e em Gramado). Espécie de beato com inúmeras veleidades profanas – como o relacionamento dúbio com o próprio pai (Jackson Antunes) –, Santinho ganhou seu status ainda criança, quando recebeu de um cachorro os restos do vestidinho de uma criança desaparecida. Um episódio interpretado como sinal de divindade e que garante ao rapaz o servilismo de mulheres como Tia (Ednelza Sahdo), Das Graças (Conceição Camarotti) e outras, que se ocupam de todo o trabalho, preparando sua comida, sua rotina e aguentando seus frequentes destemperos histéricos.

A figura da mãe (Cássia Kiss), dada como morta por suicídio, assombra a casa, ecoando detalhes biográficos da vida do próprio diretor – que, órfão de mãe ainda bebê, não nega esteja no filme o seu “luto”. Mesmo que o espectador não conheça este detalhe, salta aos olhos no filme a voltagem emocional desta família, que está no centro de uma roda de exploração da miséria e da ignorância. Um círculo vicioso do qual somente alguns tentam escapar, caso de Tadeu (Juliano Cazarré), irmão da menina morta e um dos poucos a questionar o sentido desse ritual religioso, mantido há 20 anos.

As cores fortes da fotografia de Lula Carvalho e a câmera na mão imprimem ao filme uma ligação com Glauber Rocha e o Cinema Novo, que foi identificada por críticos internacionais à época da exibição do filme em Cannes mas não esgota todas as vertentes desta obra visceral do novo cinema brasileiro.

Equilibrando-se no limite da histeria e do excesso, A Festa da Menina Morta não aspira a ser um filme simples, muito menos digestivo. Acredita na validade do uso de todos estes elementos como parte indispensável de um projeto que visa retratar pedaços de um Brasil ainda arcaico, primitivo e feroz. E o faz com uma segurança que autoriza a conclusão de que aqui está nascendo um diretor sério e comprometido com o cinema. Nada mau para um marinheiro de primeira viagem.


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