Suzana Amaral é uma diretora de poucos filmes - apenas três em quase 25 anos - mas de uma obra bastante marcante. Em seu mais novo longa, "Hotel Atlântico", que estreia nesta sexta-feira (13), a cineasta adapta um romance de João Gilberto Noll e, como no livro, leva para as telas uma narrativa fluida, com elementos mínimos, criando um clima de viagem ao inferno.
Noll é um dos autores brasileiros mais importantes da atualidade, mas pouco adaptado para o cinema - apenas "Harmada" (2003), de Maurice Capovilla, e "Nunca fomos tão felizes" (1981), de Murilo Salles, baseado no conto "Alguma coisa urgentemente".
Talvez porque sua prosa desafie convenções formais e vá muito além de contar uma história, poucos cineastas se aventuram a traduzir em imagens a obra do escritor gaúcho.
Suzana Amaral, que já dirigiu outras duas adaptações literárias, de Clarice Lispector ("A hora da estrela", 1985) e Autran Dourado ("Uma vida em segredo", 2001), parece não ter medo de desafios.
O resultado é um filme à altura do livro original, sem ser reverente à literatura, mas reinventando a história para o cinema.
Pela primeira vez, a cineasta abre mão de uma protagonista feminina, como em seus dois filmes anteriores. Seu personagem principal aqui é vivido por Julio Andrade ("Cão sem dono"), um ator desempregado que, após presenciar um cadáver sendo retirado pelo IML do hotel onde vive - e dá nome ao filme -, inicia uma jornada. Nunca fica claro por que o protagonista, cujo nome nunca é revelado, cai na estrada. Mas a viagem é mais importante do que suas motivações.
Com esse filme, Suzana faz um anti-road movie - é um filme de estrada, mas com um tom diferente do que se convencionou no gênero. Em seu caminho, o protagonista irá cruzar com as figuras mais distintas, que o modificarão de alguma forma.
O personagem central é um sujeito bastante passivo, que raramente age, e está sempre, a bem da verdade, reagindo às motivações promovidas pelos outros.
Suzana, que também assina o roteiro, trabalha na mesma chave de despojamento de Noll, na obra original. Sem se preocupar com psicologismos ou outros tipos de explicações e justificativas, a cineasta conduz seu personagem a um mergulho num mundo surreal de questionamento existencialista - o que lhe rendeu comparações, por publicações estrangeiras, ao cinema de David Lynch e Michelangelo Antonioni.
Há algo de surreal em "Hotel Atlântico", seja no destino dos personagens ou na forma como eles entram e saem da vida do protagonista - afinal, mesmo não sendo um filme narrado em primeira pessoa, acompanhamos todos os acontecimentos pela perspectiva desse ator desempregado.
A sequência de coadjuvantes que entram na vida do protagonista é arbitrária, já que ele não carrega vínculos com o passado. Sabemos que é um ator relativamente famoso de televisão, pois diversos personagens o dizem. Fora isso, nada se sabe sobre o seu passado, tampouco sobre o futuro para o qual ele parece não ter perspectivas.
Lorena Lobato ("O cheiro do ralo") é uma polonesa com quem ele trava contato num ônibus de viagem. Gero Camilo ("Carandiru") é um sacristão que lhe dá abrigo e lhe empresta a batina de um padre morto. O protagonista não apenas aceita a batina como cumpre as funções de religioso. Enfim, é um personagem que se deixa envolver com o meio e o momento.
Mais tarde, algo decisivo acontece em sua vida, ao sofrer um acidente em uma cidadezinha. Confinado ao hospital, ele conhece o enfermeiro Sebastião (João Miguel, de "Cinema, aspirinas e urubus) e a filha do médico (Mariana Ximenes, de "A mulher do meu melhor amigo") - duas personagens responsáveis por mudanças drásticas na vida do protagonista.
Com uma bela fotografia de José Roberto Eliezer ("O cheiro do ralo") e a montagem ritmada de Idê Lacreta ("Antônia - o filme"), "Hotel Atlântico" é um filme de atmosfera, de ambientação e estranhamento, bastante condizente com a jornada do personagem. O longa é um passo bastante interessante na carreira de uma cineasta vigorosa.
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